quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Poemas Álvaro de Campos - Realidade

Realidade - Cenas do episódio em animação sobre poemas de Álvaro de Campos.





Ilustração Ray Titto,  Direção Guillermo Planel, Roteiro Adaptado Sylvia Fernades, Produção Executiva Renata Varella.
Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos... Nada está mudado — ou, pelo menos, não dou por isto — 
Nesta localidade da cidade ...
Há vinte anos!... 
O que eu era então!  Ora, era outro... 
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...
Vinte anos inúteis (e sei lá se o foram! 
Sei eu o que é útil ou inútil?)... 
Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?)
Tento reconstruir na minha imaginação 
Quem eu era e como era quando por aqui passava 
Há vinte anos... 
Não me lembro, não me posso lembrar.
O outro que aqui passava, então,  
Se existisse hoje, talvez se lembrasse... 
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro 
De que esse eu-mesmo que há vinte anos passava por aqui!
Sim, o mistério do tempo. 
Sim, o não se saber nada,  
Sim, o termos todos nascido a bordo 
Sim, sim, tudo isso, ou outra forma de o dizer...
Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma, 
Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais 
lembradamente de azul.
Hoje, se calhar, está o quê? 
Podemos imaginar tudo do que nada sabemos. 
Estou parado físisca e moralmente: não quero imaginar nada...
Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro,  
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado,  
Hoje, descendo esta rua, nem no passado penso alegremente. 
Quando muito, nem penso... 
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,  
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.
Olhamos indiferentemente um para o outro. 
E eu o antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol,  
E eu o moderno lá desci a rua não imaginando nada.
Talvez isso realmente se desse... 
Verdadeiramente se desse... 
Sim, carnalmente se desse...
Sim, talvez...